terça-feira, 24 de abril de 2012
quarta-feira, 28 de março de 2012
A Cidade de Ulisses
Tudo era igual nessa manhã, quando acordaste e foste à janela. Mas tudo era diferente. Havia lá em baixo a mesma rua, as mesmas casas, as mesmas lojas de legumes e fruta, os mesmos quiosques de jornais, as mesmas pessoas fariam compras como habitualmente, trocariam com quem estava atrás do balcão as mesmas frases banais de “obrigado” e “bom dia”.
E no entanto tudo era outro, como se tivesse mudado de repente e ninguém mais soubesse, a não seres tu.
Caminhavas com um segredo dentro de ti, que não era visível para ninguém mas transformava o mundo. Sim, o 28 continuava a passar, chocalhando nos carris, ainda servia os lisboetas em algumas zonas, e os turistas apanhavam-no por divertimento, como se ele pudesse levá-los até séculos passados. E agora outro eléctrico, encarnado, que fazia o percurso das colinas de Lisboa, seguia atrás do 28, tilintando rua acima, enfeitado com pequenas bandeiras. E ali estava como sempre a estação dos correios da Praça de Camões, com portas e janelas encarnadas como todas as estações dos correios, e o mesmo símbolo, o postilhão a cavalo tocando uma trombeta. E as carrinhas que levavam crianças às escolas, os carros que entupiam as ruas parando e arrancando, os táxis que passavam àquela hora quase todos cheios, e por vezes paravam, atrapalhando ainda mais o trânsito quando o motorista se demorava a passar o recibo ou a devolver o troco.
E em baixo, nos Restauradores, para onde tinhas seguido a pé, quando olhaste para a Avenida da Liberdade e a começaste a subir pelos passeios largos, as árvores eram de um verde tenro e as folhas começavam a nascer, embora ainda estivéssemos no fim do Inverno. Aqui e ali varredores metiam as ervas dos canteiros em sacos pretos de plástico, tão grandes que poderiam esconder um cadáver humano. E entre as árvores havia velhos sentados em bancos de jardim.
De ambos os lados da Avenida sucediam-se lojas, não prestavas atenção aos letreiros das vitrines, a não ser num ou noutro caso, mas era fácil deduzir que anunciavam as novas colecções. E havia os mesmos hotéis de sempre, como o Tivoli, o teatro com o mesmo nome, o cinema São Jorge. E as esplanadas dos cafés, que ainda não tinham guarda-sóis abertos.
Mas tudo isso, tal igual a sempre, era diferente. O mundo transformara-se noutro, e só tu sabias. Por isso sorrias para ti própria, caminhando na rua numa espécie de estado de graça, como se nada ruim te pudesse atingir e a felicidade fosse uma coisa palpável, concreta, que levavas na mão, fechada dentro do bolso, e te pertenceria para sempre.
Tinhas entrado no amor como noutra dimensão. Ou num encantamento. Tudo era igual mas tudo mudara. Sentias-te poderosa e a vida era fácil, como se nunca mais pudesse haver dificuldades nem obstáculos.
Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses
E no entanto tudo era outro, como se tivesse mudado de repente e ninguém mais soubesse, a não seres tu.
Caminhavas com um segredo dentro de ti, que não era visível para ninguém mas transformava o mundo. Sim, o 28 continuava a passar, chocalhando nos carris, ainda servia os lisboetas em algumas zonas, e os turistas apanhavam-no por divertimento, como se ele pudesse levá-los até séculos passados. E agora outro eléctrico, encarnado, que fazia o percurso das colinas de Lisboa, seguia atrás do 28, tilintando rua acima, enfeitado com pequenas bandeiras. E ali estava como sempre a estação dos correios da Praça de Camões, com portas e janelas encarnadas como todas as estações dos correios, e o mesmo símbolo, o postilhão a cavalo tocando uma trombeta. E as carrinhas que levavam crianças às escolas, os carros que entupiam as ruas parando e arrancando, os táxis que passavam àquela hora quase todos cheios, e por vezes paravam, atrapalhando ainda mais o trânsito quando o motorista se demorava a passar o recibo ou a devolver o troco.
E em baixo, nos Restauradores, para onde tinhas seguido a pé, quando olhaste para a Avenida da Liberdade e a começaste a subir pelos passeios largos, as árvores eram de um verde tenro e as folhas começavam a nascer, embora ainda estivéssemos no fim do Inverno. Aqui e ali varredores metiam as ervas dos canteiros em sacos pretos de plástico, tão grandes que poderiam esconder um cadáver humano. E entre as árvores havia velhos sentados em bancos de jardim.
De ambos os lados da Avenida sucediam-se lojas, não prestavas atenção aos letreiros das vitrines, a não ser num ou noutro caso, mas era fácil deduzir que anunciavam as novas colecções. E havia os mesmos hotéis de sempre, como o Tivoli, o teatro com o mesmo nome, o cinema São Jorge. E as esplanadas dos cafés, que ainda não tinham guarda-sóis abertos.
Mas tudo isso, tal igual a sempre, era diferente. O mundo transformara-se noutro, e só tu sabias. Por isso sorrias para ti própria, caminhando na rua numa espécie de estado de graça, como se nada ruim te pudesse atingir e a felicidade fosse uma coisa palpável, concreta, que levavas na mão, fechada dentro do bolso, e te pertenceria para sempre.
Tinhas entrado no amor como noutra dimensão. Ou num encantamento. Tudo era igual mas tudo mudara. Sentias-te poderosa e a vida era fácil, como se nunca mais pudesse haver dificuldades nem obstáculos.
Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses
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sexta-feira, 29 de abril de 2011
Quando não há consolo possível
Miramar, 13 de Setembro de 1957
Estou sentado num penedo diante do mar, a esmoer mais uma pílula amarga do destino. Não digo de que natureza ela é, porque só me interessa neste momento registar o bem que nos pode fazer em certas horas a impassibilidade duma grandeza sem contingências. A terra e os pobres mortais que a habitam, por fraqueza de condição, não conseguem levar a indiferença aos últimos limites. E apenas ela é consoladora, por não oferecer consolo quando não há consolo possível.
Miguel Torga, Diário VIII
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Quando não há consolo possível
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
sábado, 11 de dezembro de 2010
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